segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

O quadro da sala e a história de um romance


Em 1997, eu morava num apartamento de cobertura no Morumbi, em São Paulo, com uma bela vista para as casas do Jardim Guedala e, mais ao longe, a cordilheira de cimento da metrópole. Tinha um bom emprego, uma bela e jovem mulher, com quem tinha passado seis anos de um casamento convencional. E estava profundamente infeliz.

Não conseguia terminar o primeiro romance que escrevia, e que viria a se chamar Filhos da terra; não entendia o que havia de errado com o livro, ou comigo, e resolvi mudar tudo: emprego, casa, estado civil. Tudo.

Durante a primeira semana, minha ex-mulher foi buscar consolo com a família no Rio Grande do Sul;fiquei esse tempo sozinho na casa que ia abandonar. Como uma terapia, comprei telas e tinta. Gostava de desenhar, mas nunca havia pintado nada. O primeiro quadro foi um monstro azul que se parecia, muito, com O Grito, de Munch. O segundo foi a paisagem que eu avistava do andar superior, ao lado da piscina.

De tudo o que tinha em casa, além de uma mala de roupas, a única coisa que levei embora foi este quadro, que hoje está na Casa do Escritor, em Gonçalves. Lembrança não da casa, nem da paisagem, mas da força misteriosa e imperiosa que me fez jogar fora aquele cenário e a vida inteira para começar outra.

Cruzei com minha ex-mulher na garagem; ela chegava, eu ia embora.

- Onde você vai? - ela perguntou.

- Não sei ainda. Saí também do emprego, também não sei como ganharei a vida.

Ela olhou então o quadro que eu levava debaixo do braço. E disse:

- Você nunca vai passar fome.

Foi a última vez que a encontrei, antes da asisnatura do divórcio; depois disso, nunca mais. Comprei uma casa nas montanhas, onde estou ainda hoje. Terminei o livro. Encontrei, nas montanhas, a mulher da minha vida. E, desde então, já escrevi uma série de romances e livros de não ficção. Levo a vida que imaginei. E que começou a ser construída ali.

Escrever não é escrever, em si: como disse Gabriel García Marques, é viver para escrever. É, sinteticamente, viver. Era isto o que me faltava: levar a vida como eu a desejava. Ser feliz fazendo o que gosto, estando onde gosto, sem desistir dos sonhos. Todas as vezes em que contrariei a mim mesmo, essa vontade foi mais forte e me levou de volta ao trilho.

As montanhas fazem a gente sentir o prazer viciante da liberdade. Hoje olho o quadro na parede e penso que o cenário era bonito, mas não é como as montanhas: a cidade nos dá uma falsa liberdade. Somos prisioneiros de um sistema. A vida não está dentro de um escritório, ou numa academia de ginástica. Ela está lá fora, onde se sente o cheiro da terra, do orvalho, o calor do sol, o gosto do sal marinho.

Esse é o quadro. Viver, para escrever, e escrever para viver. Ou pintar.