Em 1997, eu morava num apartamento de cobertura no Morumbi, em São Paulo, com uma bela vista para as casas do Jardim Guedala e, mais ao longe, a cordilheira de cimento da metrópole. Tinha um bom emprego, uma bela e jovem mulher, com quem tinha passado seis anos de um casamento convencional. E estava profundamente infeliz.
Não conseguia terminar o primeiro romance que escrevia, e que viria a se chamar Filhos da terra; não entendia o que havia de errado com o livro, ou comigo, e resolvi mudar tudo: emprego, casa, estado civil. Tudo.
Durante a primeira semana, minha ex-mulher foi buscar consolo com a família no Rio Grande do Sul;fiquei esse tempo sozinho na casa que ia abandonar. Como uma terapia, comprei telas e tinta. Gostava de desenhar, mas nunca havia pintado nada. O primeiro quadro foi um monstro azul que se parecia, muito, com O Grito, de Munch. O segundo foi a paisagem que eu avistava do andar superior, ao lado da piscina.
De tudo o que tinha em casa, além de uma mala de roupas, a única coisa que levei embora foi este quadro, que hoje está na Casa do Escritor, em Gonçalves. Lembrança não da casa, nem da paisagem, mas da força misteriosa e imperiosa que me fez jogar fora aquele cenário e a vida inteira para começar outra.
Cruzei com minha ex-mulher na garagem; ela chegava, eu ia embora.
- Onde você vai? - ela perguntou.
- Não sei ainda. Saí também do emprego, também não sei como ganharei a vida.
Ela olhou então o quadro que eu levava debaixo do braço. E disse:
- Você nunca vai passar fome.
Foi a última vez que a encontrei, antes da asisnatura do divórcio; depois disso, nunca mais. Comprei uma casa nas montanhas, onde estou ainda hoje. Terminei o livro. Encontrei, nas montanhas, a mulher da minha vida. E, desde então, já escrevi uma série de romances e livros de não ficção. Levo a vida que imaginei. E que começou a ser construída ali.
Escrever não é escrever, em si: como disse Gabriel García Marques, é viver para escrever. É, sinteticamente, viver. Era isto o que me faltava: levar a vida como eu a desejava. Ser feliz fazendo o que gosto, estando onde gosto, sem desistir dos sonhos. Todas as vezes em que contrariei a mim mesmo, essa vontade foi mais forte e me levou de volta ao trilho.
As montanhas fazem a gente sentir o prazer viciante da liberdade. Hoje olho o quadro na parede e penso que o cenário era bonito, mas não é como as montanhas: a cidade nos dá uma falsa liberdade. Somos prisioneiros de um sistema. A vida não está dentro de um escritório, ou numa academia de ginástica. Ela está lá fora, onde se sente o cheiro da terra, do orvalho, o calor do sol, o gosto do sal marinho.
Esse é o quadro. Viver, para escrever, e escrever para viver. Ou pintar.