quarta-feira, 12 de outubro de 2016

O Aldemir que eu pintei

Por certo tempo, depois de um emprego onde eu sem querer acabei ganhando algum dinheiro, fui morar numa casa com piscina e palmeiras imperiais no Morumbi. Tinha uma namorada, que não bastando querer trazer seus trapinhos para casa, resolveu decorá-la com a grandiosidade merecida. Deixei.

Entre os pertences que ela trouxe, estava um belo e grande quadro, um vaso de flores coloridas, assinado por Aldemir Martins, uma herança de família. A obra ganhou destaque na sala, sobre um aparador de vidro e dois grande cachepôs de vime, de onde saíam plantas ornamentais de verdade.

Ficou bonito: a sala tinha uma lareira, um degrau para a sala de jantar, de onde se via um jardim de inverno e, do outro lado, uma parede envidraçada que dava para a psicina, com uma piscina iluminada à noite de azul.

Parecia o idílio perfeito, mas comecei a observar com o tempo que algumas coisas andavam sumindo misteriosamente. E, um belo dia, entrei e,m casa e não vi o Aldemir. Foi então que fiquei sabendo que minha namorada se metera em dívidas e ia vendendo as coisas pouco a pouco.

Além de chateado com a maneira como descobri aquilo, lamentei pela falta do quadro, que para mim já fazia parte do ambiente. Entao comprei uma tela, do mesmo tamanho, e procurei pintar um quadro igual - o mais igual que eu poderia tentar de um Aldemir. Emoldurei, e lá ele ficou. Não tinha grife, mas fazia a sua função. Uma solução caseira, com a qual fiquei feliz.

Bem, não é preciso explicar muito por que o namoro não durou. Quando a namorada enfim se despediu, passei a olhar aquele quadro com certo aborrecimento, uma lembrança incômoda de certas chateações. Levei-o eimeiro para o quarto de hóspedes. Depois, quando vendi a casa, para a minha casa de campo, que na época se encontrava no bairro do Serrano, antes de vir para o lugar onde esta hoje.

Comecei a achar defeito. Achava que as flores tinham as cores muito lisas, n]ao tinha o mesmo refinamento de Aldemir. Eu conhecia o original, sabia a diferença, então me incomodava.

Então resolvi transformar o quadro. Tomei as reproduções de quadros de mulheres de um calendário de Klint, piquei-as em centenas de pedaços, o que teve um certo gosto de vingança. E, no lugar das flores, colei minhas mulheres partidas. Minhas flores, então, se tornaram um mosaico de rostos rasgados, mulheres de antigamente, com o refinamento de Klint, estilhaçadas pelas minhas mãos turbulentas.

O quadro original foi pintado em 2003, mas não tinha data. Coloquei a verdadeira data do seu nascimento, 2009.

Depois que coloquei todos aqueles retalhos no lugar, passei um selante sobre tudo. Virei o quadro de ponta-cabeça para secar, e pensei: aí está um verdadeiro quadro meu.









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